TENDA | enrica bernardelli . marcia thompson . marta jourdan




abertura: 21 de setembro de 2024
exposição: 23 de setembro a 26 de outubro

enrica bernardelli
marcia thompson
marta jourdan

TENDA

Estamos diante de 3 exposições. É claro que diálogos entre as obras dessas artistas podem ser eventualmente feitos, mas, diria, que existe uma autonomia em cada uma dessas poéticas. Para além da amizade e de uma questão geracional que poderia fragilmente conectá-las, o que se impõe é como cada uma delas lida com a objetualidade e como a forma ou, sinteticamente, a escolha plástica de cada uma das três aponta para uma diluição da matéria e do tempo.

Como fazer pintura a partir da sua própria destruição? Parece-me ser uma questão que converge em direção aos objetos-pintura de Marcia Thompson. Desafiando a planaridade que supostamente se espera da pintura, a artista constrói manualmente objetos tridimensionais que são produzidos a partir da ação de desfiar aquilo que conceitualmente transmitiria sustentação à pintura: o linho, a linha ou a corda. Quero dizer que um material que poderia ser confundido com a tela ou a superfície que revela o ato de pintar é desfeito ou dilapidado para se transformar na pintura em si. O “chassi sem a tela”, representado em um desses objetos, é a síntese e a origem, mesmo que metafórica, desse processo que desdobra numa relação tensa entre material e obra. Mas não é só o ato do desfazer que está em questão pois interessa à artista a forma em como essas pinturas objetuais ganham tangibilidade: o material é emaranhado, os nós se atravessam, percebemos a gestualidade empregada, a pintura se torna algo compacto, mas essas ações não são resultado de uma atitude puramente agressiva mas, ao contrário, são da dimensão da afeição e renovam o próprio estado de invenção da pintura. Situam-se nesse intervalo entre objeto e pintura, mas são do âmbito do pictórico. Sua volumetria e densidade, impregnada na matéria, nos faz perceber diferentes perspectivas, texturas, maleabilidades que a pintura planar nem sempre nos oferta. Essas estruturas cúbicas são pura concentração de pigmento e densidade de tramas. A sua escala, em certa medida, mais diminuta ou do tamanho do alcance do gesto da artista, faz com que nos voltemos para sua a trama, suas peculiaridades e tessituras. São estruturas moles e suaves que de alguma forma criam uma relação mais próxima ao tato. Esses “objetos pictóricos” requisitam a nossa presença pois são da ordem também da semelhança, do reconhecimento de que esses materiais fazem parte do nosso cotidiano. E essa reflexão sobre a natureza dos materiais, inclusive, segue para outras mídias. Em Untitled (Border), vídeo produzido nesse ano, a artista, ao caminhar pela beira da praia e enfrentando as intempéries da natureza, inicialmente desenrola um novelo de lã que constitui um rastro ou fronteira, como o título aponta, sobre as pedras, para em seguida realizar o procedimento inverso: Thompson recolhe aquilo que demarcava um território, mais uma vez provisório, afim de demonstrar materialmente não só a temporalidade daquela ação mas a própria efemeridade em que estamos mergulhados. O fio funciona tanto como guia de reflexões quanto como alicerce formal na construção desse espaço tensionado, problemático lugar dessa trama contraditória, dentro do qual o sujeito espectador é obrigado a tomar parte.

Seu mais recente projeto, é um livro (Sem título, biografias) formado por diferentes páginas articuladas entre si como em um sistema de dobras, tendo em cada uma delas a impressão de pautas que fazem alusão a diferentes culturas e seus modos ou sistemas de alfabetização/escrita. É outra alusão de Thompson não só à forma (arquitetônica) mas à artesania e a ação de simultaneamente erigir e suprimir, fundar e desmoronar. Módulos, cubos abertos, arquiteturas provisórias são feitas e desmontadas na mesma velocidade tendo em suas paredes as linhas gráficas, como que partituras, que identificam uma variedade de línguas e culturas. A sensação é de que tudo ainda está por ser feito: tanto no ato da manipulação das páginas que se convertem em estruturas espaciais quanto nos registros caligráficos que estão à espera do próximo autor.

As deambulações de Marta Jourdan são fator preponderante para a construção de suas obras. Atenta ao seu entorno, a artista constrói seus trabalhos a partir, muitas vezes, das coletas que realiza. Seus objetos são fundados na relação intrínseca entre madeira, pedras e outros materiais preferencialmente orgânicos que possam naquele momento ou em um futuro breve ser aproveitados como matéria-prima. Mas não só isso, outros materiais que compõem suas obras pertencem ao universo da cerâmica, produzidos pela artista mas sem deixar de ter uma proximidade com formas que fazem parte do nosso cotidiano. Sem abandonar a escolha cromática ou a composição geométrica, mesmo que constituída por meio de arranjos que nos lembram as gambiarras tão comuns na cultura latina, as obras se fundam nos encontros fortuitos entre Jourdan e os materiais. Em meio a fragilidades – madeiras finas que representam uma paisagem viva mas em decomposição ou pequenos objetos criados pela artista e muitas vezes partilhados e incompletos ou em aparência de dissolução – o que se coloca é a potência de uma unidade, de um campo de força que é constituído a partir desse sistema constituído de partes. Essa lógica também pertence aos seus desenhos. Usando embalagens de produtos industrializados (como doces, por exemplo) ou páginas de jornais, que recebem uma intervenção de cor, a artista cria superfícies monocromáticas que possuem, como no caso do desenho exposto, uma relação intrínseca com tramas construtivas. Jourdan alia o recorte sobre a matéria industrializada, pronta, criando um regime do vazio que se justapõe ao próprio espaço intervalar da superfície em que esses recortes são colados. São formas camufladas, pois a sua origem está rasurada, que ganham outra funcionalidade e se aderem a esse dado construtivo (cambaleante mas sem perder o caráter engenhoso e afetuoso) muito peculiar na obra da artista.

A rusticidade dos materiais adiciona um regime natural de cor às obras, contudo, é a esponja que muitas vezes emprega, pela sua extravagância cromática, uma dose extra de efeito pictórico. Mais do que isso, esse mesmo material acentua uma característica central na obra de Jourdan que é a comicidade. A esponja ora aparece espremida entre a cerâmica; ora ela serve como um anteparo; ou ainda, por um efeito de avizinhamento, parece dar uma característica carinhosa a um elemento maior e mais pesado do que ela. O que merece ser acentuado é que em nenhum desses exemplos constrói-se uma atmosfera de dor ou soturnidade, ao contrário, o que se celebra é um encadeamento de risos, ternura (os materiais gostam de estar juntos mesmo que em alguns casos, aparentemente, estejam colidindo) e jocosidade, como se estivéssemos assistindo a um cartoon. E injetar humor, por meio de uma estética que se entrecruza com o mundano, na seriedade elevada do mundo da arte não é pouca coisa.

Por mais que uma estrutura de correlação ou justaposição entre os materiais possa explicitar uma sensação de movimento, o que se coloca paradoxalmente é a suspensão da aceleração. É nesse momento que as obras mais se aproximam de uma natureza morta, de uma relação ao mesmo tempo próxima (do silêncio) da pintura assim como do cotidiano da artista; do gesto inaugural de converter um objeto descartado – algo que é singular visto que muitas vezes é um pedaço da natureza ou então um dispositivo sem aparente utilidade feito por Jourdan – em arte. Esse encontro de afetos que chamo a atenção é resultado direto da escolha da artista não por objetos industrializados produzidos em massa mas por resquícios da natureza ou peças constituídas artesanalmente que elaboram um ambiente de empatia com o público.

As obras de Enrica Bernardelli fazem parte do filme U, um cinema imaginado, nem sempre projetado, que vem, portanto, sendo representado de distintas formas. Como um projeto em desenvolvimento, sem registro de início muito menos de fim, ou uma fita de Möbius onde não conseguimos distinguir o que é fora ou dentro, gênese ou término porque a razão está em suspenso, Filme U também se permite realizar fora do ambiente audiovisual, embora nunca deixe de ser projeção ou dispositivo ligado ao cinema. Filme U é uma sequência de unidades provisórias, pois está sempre à espera de uma nova realização adiante. Ou então, diria que Filme U é o resultado do percurso de uma só linha, cujo fim volta a se encontrar com o começo não sabemos onde.

Os dois duplos fotográficos escolhidos para a exposição são frames/partes do filme U ao mesmo tempo que mantêm a sua autonomia enquanto operação estética. Em Objeto de cena/Filme U, vemos, à esquerda, em um ambiente doméstico, um homem deitado, entre o estado da vigília e do sono, que lê um livro. O espaço da sala é tomado por bandeiras em formato geométrico – curiosamente quase todas com a presença de um corte anunciando a incompletude de sua estrutura e, portanto, prontas ao exercício do acontecimento, do acaso – suspensas por fios. Um clima de mistério absorve a cena. À direita, a imagem de uma praia cercada por um lado pelo mar e pelo outro por um banco de areia, com coqueiros ao fundo. Mas essa imagem – fictícia ou real, pouco importa – é sobreposta pela figura de uma das bandeiras que está na sala numa aparição diluída, transparente, um tanto fantasmagórica, no caminho entre a fantasia e a realidade. Diria que se anuncia como uma miragem, pela ordem da incerteza. E mais do que isso, uma pintura da mesma bandeira, em uma escala maior que o duplo fotográfico, está ao lado das imagens. Seria uma quimera? Teria o homem adormecido e sonhado? Mas a bandeira enquanto pintura, um objeto real, altivo, exibindo sua extravagante imponência, transmite a possibilidade da certeza. Já Personagem de cena/Filme U configura uma possibilidade poética. Eis o paradoxo do artista invisível, da performance que está acontecendo sem sabermos ou do acontecimento, portanto, que se faz na crença de que ele existe. A presença do objeto/veste com a inscrição de sua função é uma ironia que interroga a própria natureza do objeto de arte. A artista está interessada na natureza permeável das coisas, numa fresta que coloca em questão a própria convicção sobre o que vemos. Sem título/Filme U [Cena] é a certeza indelével de que a obra move-se pelo terreno da teatralidade. A palavra cena inscrita sobre um objeto ovalar apoiado em uma base evoca uma atmosfera de palco mas também pode ser escultura que, por sua vez, pode se materializar no frame de um filme.

As obras de Bernardelli querem provocar a situação indutora do estado de indistinção entre sonho e realidade. É nessa espiral de dúvidas e intrincado raciocínio que a obra da artista se faz, sempre pela via da transmutação entre continuidade e descontinuidade. O trabalho de Bernardelli não se limita a uma só determinação; sua tendência é sempre transbordar para outras associações, afinidades, relações; ultrapassar as bordas; trans-bordar ou des-bordar, isto é, ir além das bordas. E, claro, está incluído nesse processo de contaminação metabólica a experiência do tempo. Ele não é determinado de forma racional ou linear, mas é continuamente abreviado e apressado, se faz entre intervalos, em pausas que instituem a dúvida. Essa constituição de tempo assimétrico se alinha à própria natureza deslizante da obra da artista.

As três poéticas fundam um lugar que se constrói a partir do inacabado. As obras parecem representar um desalojar, pois transformam aquilo que reconhecemos em uma forma diferente daquela que acostumamos a nos relacionar. A pintura de Thompson é uma condição negativa da sua própria matriz pois interessa a ela a destruição para em seguida refazer a seu modo uma pintura fundada na tactilidade; os objetos encontrados ou mesmo construídos por Jourdan possuem uma forma ainda incompleta, pois não parecem estar totalmente prontos e se localizam exatamente nesse exercício de, entre suas brechas e faltas, encontrar o lugar do amparo e do afeto; e, a fenda entre delírio e realidade, ficção e veracidade no trabalho de Bernardelli constrói, em sua estrutura espiralada e decididamente contínua, um senso de incompletude para quem espera 
indubitabilidade.

- Felipe Scovino