contratempo | 13. 06. 13 > 13. 07. 13

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contratempo | 13. 06. 13 > 13. 07. 13

Mercedes Viegas Arte Contemporânea apresenta a partir de 12 de junho de 2013, para convidados, e do dia seguinte para o público, a exposição “Contratempo”, com obras inéditas da artista portuguesa Catarina Botelho. Nascida em Lisboa em 1981, onde vive e trabalha, Catarina Botelho vai mostrar quatro fotografias da série “Projecto Lisboa” (2012), em impressão de jato de tinta sobre papel de algodão, com tamanhos de 140cm x 94cm a 120cm x 94cm.

 

A artista expõe regularmente desde 2005, e já recebeu diversos prêmios, como o European Photo Exhibition Award 01 – com exposição na Haus der Photographie, em Hamburgo, Alemanha –, Plat(T)form 10, no Winterthur Museum, Suíça, em 2010, Prémio Bes Revelação 2007 – que lhe valeu expor na Fundação de Serralves, no Porto –, a 2ª Open Call Galeria Elba Benitez en Kvadrat, em Madri, em 2012, e as residências FAAP Programa de Residências , em São Paulo, em 2013, e Cml/Budapest Galery, Budapeste, em 2010.

 

 A série “Projecto Lisboa”, iniciada em 2012, está em desenvolvimento, e Catarina Botelho faz uma “arqueologia do espaço, do tempo e da cidade”. “A Lisboa do centro histórico é uma cidade sem tempo, perdida em si mesma. Muitos dos edifícios que encontramos ao passearmos pelas suas ruas são espaços arquitectónicos devolutos (vazios e fechados). Interessa-me testemunhar a sua existência e vivências anteriores destes lugares através dos objetos aí encontrados”, explica.

 

Para ela, em uma conjuntura internacional de particular complexidade política, econômica e social, “interessa continuar a olhar, pensar e trabalhar os objetos no seu espaço, olhar para estes como um espelho do que acontece a sua volta”.

 

“A luz incide sobre estes edifícios, superfícies arquitetônicas, paredes, chão e possíveis objetos que abrigam”, observa a artista. “A luz passa por eles, em um trajecto cíclico, infinito, como a sua única companhia. Interessa-me trabalhar esta vivência repetida, cotidiana dos espaços, e a observação deste ciclo”.

Catarina Botelho - Contratempo

13 junho | 13 julho

 

“…a memória involuntária não se opõe simplesmente à memória consciente, aquela que informa sem fazer reviver.”

(Claude Lévi-Strauss in Olhar, Escutar, Ler)

“…A superfície é o que aí está

E nada pode existir excepto o que aí está.

Não há recantos no aposento, só alcovas, (…)”

(John Ashbery in Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas)

As 4 fotografias - “projeto Lisboa” - em Contratempo inscrevem-se numa série em processo, o que significa que Catarina Botelho continua e continuará a registrar excertos, trechos de espaços arquitectónicos institucionais (e públicos) por muito acumulo ainda. Não se prevê a exaustão pois estas fotografias, acrescidas do conjunto das demais existentes (aqui não viajadas), aguardam as vindouras. Assim, se estabelecem a fortiori, numa compilação de fragmentos organizado como todo. Trata-se de um projeto em desenvolvimento, como sublinha a artista portuguesa, dominado por uma vontade irreversível, mesmo perante as múltiplas dificuldades de acesso aos locais de tipologias diversas: escolas, repartições, tribunais…todos eles devolutos.

“ Penso que esta série relaciona-se com uma ideia de arqueologia dos espaços, sendo os objectos corpos, quase esculturas. Dentro dos edifícios sobrepõem-se vários tempos, na arquitectura e em todos os vestígios de utilizações prévias.

Interessam-me estes espaços como uma espécie de orgãos internos da cidade. Lugares aos quais não temos acesso mas que são vitais para o seu funcionamento.”

(Catarina Botelho)

No “Contra(o)tempo” deslocado até ao Rio de Janeiro, as fotografias remetem, pois, para um olhar seletivo e detalhista sobre edifícios/imóveis (institucionais) degradados, de Lisboa. Nada impede que o exercício desse olhar incisivo e crítico da fotógrafa gere imagens radicadas a partir de outros lugares e países, abrindo o mapeamento e alargando arquivo, assim propondo um incremente e polissemia de teor societário, ideológico e estético – portanto cultural.

Se por um lado, a substância das imagens remeta para uma situação de negligência, decadência e/ou deterioração de unidades arquitectónicas, por outro lado, as respectivas fotografias evidenciam uma força quase sublime.

Verifica-se a implicação epistemológica, quanto metodológica que supõe um primado categorial que é denotativa das exigências contemporâneas e atuais plasmadas em conhecimentos/estudos relacionados (e solicitados entre si): inventário sócio-histórico e patrimonial; catalogação estética; arquivo antropológico-simbólico…

A amplitude desta matéria conceitual (compósita) autentica o escopo estipulado pela autora, ao eleger uma “arqueologia” individualizada e coletiva, a entrelaçar o impulso recoletor – espécie de proclamação latente - que carece (para se expandir e atingir os seus propósitos) do dinamismo de espectadores que a queiram e saibam rececionar. Sobre estes conteúdos é urgente elaborar reflexões: ação estética de cariz colaborativo, propugnando a consciencialização do espectador ativo (Antoni Tàpies), com afinidade ao operador estético (José Ernesto de Sousa), convertendo-se (talvez) em agente/espectador emancipado (Jacques Rancière)…

As fotografias cativam “paisagens restritas”, escolhidas que são excertos iconográficos situando-se num espaço/tempo em suspensão. Residem numa zona em que “ainda ser…algo” é condição quase paradoxal. Pertencem a uma plataforma - por assim dizer – de translucidez crítica, onde se pensa algo que já deixou de ser (por relação ao que inicialmente lhe estava atribuído) e que persiste em contrariar o inevitável destino suposto: o “estado devoluto” irreversível. Os conteúdos iconográficos dizem: “ainda” está vivo, “ainda” é vivo, pelo exercício (passivo?) do existindo (daseind)… Será, porventura essa acepção ontológica a convergir, pelo encaminhamento humano que se rege pelo/para o absurdo.

No contexto da história das artes e das idéias, e no que respeita às designações (terminologia e nomenclatura) de “Stillleben” versus “Nature morte” – atribuída a um gênero pictórico durante muito tempo considerado como “menor” (traduzido, neste caso, para uma incidência categorial do universo fotográfico), constata-se que, nestas derradeiras décadas, tem adquirido legitimamente e com coerência, adeptos convictos e inteligentes. Neste “recorte”, o Stilleben subverteu a sua matriz categórica, denunciando estas “naturezas-mortas” edificadas que também são “paisagens”. Tratando-se de um subgênero menosprezado e de valência “acessória”, consolidou-se – pela sua artisticidade - em palco de experimentações desencadeadas, logo, nas vanguardas históricas de inícios do séc.XX. Não fosse alheio o fato do olhar dos artistas incidir sobre os objetos que lhes rodeavam o quotidiano, explorando definições de duração e remanescência em torno de si mesmos. Acharam-lhes empatia e familiaridade. Giorgio Morandi consignou-os de razão metafísica, quiçá mais ôntica…subtraiu-lhes sombra, sem que por tal lhes retirasse “existência”, contrariando a crença mitológica.

Na atualidade, esses “objetos” adquiriram – como se evidencia nestas fotografias – a qualidade de “fragmentos de resistência”. Sendo atributos, rastros ou vestígios, os objetos assinalados e isolados, simbolizam o humano nos seus equívocos e potencializam interpretações ambíguas, convocando disciplinas concomitantes – em contexto epistemológico, científico, quanto sociológico e ideológico. São evidências históricas, qualificativo ao qual não se podem subtrair. O plasmar de objetos in situ, cativados em ação direta, sem intervenção cenográfica ou, de alguma forma, construída (leia-se idealizada) é uma efetividade que assiste a séries fotográficas, caso da metodologia, procedimento e decisão de Catarina Botelho.

Desde há anos que a fotógrafa portuguesa trabalha uma metodologia de série/projetos, cujos protagonistas (nuns casos) e as personagens (em outros) são objetos iludindo esse reconhecimento de “natureza-morta” – em ato de remissão voluntariosa pois intencionalizada.

Os conteúdos semânticos das suas fotografias implicam uma atitude de perseverança, exercitando a acuidade visual, quanto da razão e pensamento. Além de uma evidência, camada visual de adesão e de assunção poéticas, a sustentação testemunhal predomina.

Os autores contemporâneos que na história recente da fotografia se perfilam, enquanto adeptos deste recorte estético (polissêmico), procedem mediante suportes diferentes e em consonância a outros tantos registos – o que garante a maior consistência e certeza, quanto aos princípios ativos que pretendem colmatar.

A captação (cativação) de episódios dispersos em objetualidade (sincrética) é relevante e cumpre um desígnio humanista urgente. Diga-se que os objetos presentificados carregam uma radicação (simbólica), plasmada em estruturas antropológicas transpostas, imprescindíveis para o correto argumentar sobre a situação da humanidade em estado contemporâneo e atual.

Os fotógrafos que deles se apropriam – olhando-os e vertendo-os em imagens fotográficas espessas – no seu contexto “quotidiano” ou “estrangeiro”, configuraram uma estética fundada no real, propugnando uma axiologia intermedial que atinge consciências múltiplas.

Não se esqueça que, numa indexação estética, no advento da fotografia, o gosto pelas ruínas congregou artistas e poetas, estabelecendo uma normatividade que atravessou o romanticismo, o decadentismo e o simbolismo exacerbado até à legitimação crítica (da barbárie…). Nos limites do séc. XX, iniciado o XXI, o olhar sobre elementos e objetos que nos rodeiam, assumiu proporções referenciais díspares, externalizadas por morfologias oposicionais ou afins. Ou seja, o sujeito que “saiba ver” depara-se com resultados imagéticos congêneres em aparência, que resultam de pressupostos conceituais bem singulares e quase oposicionais, por vezes. Este reconhecimento aguça a curiosidade do público, propondo o questionamento, quer de ideias específicas e singulares sobre si, abrindo uma circularidade que admite sobreposições, prevendo interseções e sincronias em termos formalistas. As imagens em zona de similitude (pois nelas nos reconhecemos, projetando e introjetando como unidades “em estado de ruína” a rever) garantem que através de percepções de “simulacro” e ilusão…se tornam mais cognitivos e efetivos, tanto os fatos implícitos do exterior, quanto as vidências internas dos eu(s).

Alerta: quando se observam as 4 fotografias de Catarina Botelho, assiste-se a um deflagrar/desenrolar de paisagens que ainda sendo excertos do real, avançam rapidamente para a celebração estética, galgando campos de imaginário pessoal, potencializando, por isso mesmo, o impacto intervencionado (aquele que enxerga de verdade) do espetador.

Maria de Fátima Lambert

SP, Maio/Junho 2013

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