ana vitória mussi | marcia thompson - 15 | 06 | 11 > 16 | 07 | 11
ANDAMENTO : ANA VITÓRIA MUSSI
Na terminologia musical, andamento é a velocidade de execução de uma música, seu tempo, sua pulsação. “Andamento” reúne obras recentes de Ana Vitória Mussi que têm como questão o tempo e o movimento. Batizando a mostra e as obras com termos provenientes da teoria da música – arte do tempo por excelência – a artista interroga, a partir do instante paralisado da fotografia, a pulsação das imagens e, inversamente, a imagem das pulsações.
Ao invés do corte temporal da fotografia, do golpe preciso no fluxo do acontecimento, a repetição, a cadência, o pulso. Ao invés da unidade, do instante escolhido e privilegiado, as relações, as distâncias, os intervalos, os interstícios. Pausas e silêncios, vazios e deslocamentos entre as vibrações.
Ana Vitória é uma das pioneiras no país da fotografia em seu campo ampliado. São décadas de densa investigação, refletindo a condição da imagem no mundo contemporâneo e nossa submissão a seus poderes. Utilizando vários suportes e objetos, estendendo a fotografia além da cópia no papel e da parede que a acolhe, confrontando a corporeidade e a fantasmagoria de toda imagem, a artista colocou-se desde cedo a difícil tarefa de fotografar o interstício entre o que se vê e o que permanece velado, entre olhar e pensamento.
Em “Intervalo”, fotografias da janela de sua casa, o que vemos é o enquadramento que emerge da escuridão, a escrita da luz que atravessa as frestas das venezianas, sua concretude confundindo-se com a imaterialidade das sombras que se projetam. Como se a imagem apenas se tornasse possível no limite do que a detém, no movimento de sua desaparição. Como se necessitasse da noite para existir.
A mesma geometria da delicadeza – um olhar atento sobre os pequenos detalhes, as rotações sutis do mundo – está em “Cadência imperfeita”: fotografias de fragmentos da escada helicoidal de sua casa são reunidas aleatoriamente. Fere-a de tal modo que nos faz perder escalas e medidas. Nessa inconclusão, na cadência interrompida do movimento ascensional da escada, o olho realiza andamentos erráticos, construtivismos imperfeitos. Uma geometria do cotidiano tecendo uma poesia do insignificante, descobrindo, na insignificância, a força da imagem.
“Suspensão” e “Toque” são imagens de atletas no ápice de seu gesto, de seu salto, de seu mergulho. Em “Suspensão”, uma sequência fotográfica estira o instante do corpo no ar. Um corpo suspenso sem destinação, sem pouso... apenas à espera. “Toque” guarda o mistério dos objetos criados por um ilusionista: o beijo frio da esgrima ganha profundidade e rotação.
“Pulsação” e “Pausa” são também objetos, mas realizados a partir de imagens do filme de Wim Wenders, “Asas do desejo”. São capturadas de outra imagem-tempo, o cinema. O movimento pendular do anjo e os movimentos de queda ou ascensão da trapezista são insinuados nas sobreposições de transparências, na incidência de luz, nas duplicações pelas sombras, no deslocar do espectador. Se o anjo no balanço alude ao metrônomo (dispositivo que mede o tempo musical, produzindo pulsos de duração regular), “Pausa” é uma impressão serigráfica sobre acrílico cuja sombra se projeta na tela que a produziu, invertendo os papéis que lhes eram assinalados: o que era matriz torna-se espectro, o que era cópia transforma-se em imagem matriz.
Jogos de ocultamento e transparência, de intimidade e exposição, turvam as fronteiras entre a solidão da visão e a dispersão do espetáculo, entre a pulsação das imagens e a imagem das pulsações - entre o secreto do desejo e a exteriorização que o dissipa em suas asas.
Marisa Flórido
Rio de Janeiro, 2011
DESALINHO: MARCIA THOMPSON
... eu mesmo mentindo devo argumentar
que isso é bossa nova que isso é muito natural...
A letra da canção Desafinado, de João Gilberto, tenta exaltar o valor de uma melodia cantada fora de tom, com sinceridade; como se no seu desalinhamento, a música pudesse entrar num novo território sonoro feito de dissonâncias naturais. Na sua última exposição, Desalinho, o trabalho mais recente da artista plástica Marcia Thompson, sediada em Londres, articula um movimento semelhante em direção a uma ordem diferente no campo visual, onde o tom é encontrado fora da norma. Sustentada por um processo de pensamento que liga a mão a um conceito quase Zen do vazio, ela produz uma arte aonde o branco reina sobre todos os tipos de artifícios e os materiais se comportam de uma maneira sem precedentes. Há alguns anos, a escolha de Marcia pelo branco é a marca registrada do seu trabalho numa variedade de técnicas: do papel aos volumes de silicone e tinta a óleo, de molduras a trabalhos de rendas, nos quais uma interação não-ortodoxa de materiais produz um inesperado efeito visual e de textura. Num dos mais importantes documentos teóricos da arte abstrata, O mundo não-objetivo, Kasimir Malevich escreveu: "No ano de 1913, tentando desesperadamente libertar a arte do peso do mundo real, eu me refugiei na forma do quadrado". O interesse de Malevich em teosofia o impeliu em direção à busca do espírito, no que ele chamou "a sensação não-objetiva e a infinidade". De uma forma parecida, os trabalhos de Marcia Thompson parecem desejar a recriação de um senso de infinidade com seus gestos simples nos objetos feitos à mão e na escolha do quadrado vazio - a moldura - como o recipiente da sua imaginação. Em sua série de trabalhos em papel, a repetição de linhas e pontos pode ser vista como que vinda do minimalismo e conceitualismo, mas de alguma forma corrompem tais referências, introduzindo um tipo de codificação que permite o aparecimento de notas individuais entre um sem número de marcas similares. Nascidos de padrões de pensamento ou, talvez, de exercícios de meditação, os desenhos se desenvolvem em seqüência: da reiteração uniforme à representação subjetiva, mas sem se referir ao mundo lá fora, e ao invés ecoando alguns momentos internos de iluminação. Nesta linha, o uso de uma partitura como suporte e a introdução da tinta dourada, no seu Sem título de 2005, produz uma anotação emocional como a luminosidade de um abismo em cuja beira poderíamos nos deixar mergulhar no som dourado de um recife de corais. A natureza é abordada lateralmente no seu trabalho de intervenção em fotografia Sem título, 2010, aonde vemos uma floresta através dos interstícios de uma cerca desenhada na sua superfície com uma caneta prateada: o mundo natural se torna assim filtrado por um véu de percepção subjetiva. No teto da galeria, pequenos dosséis de renda oferecem abrigo aos nossos olhos, restaurando o esforço das mãos ardentes de mulher na construção de obras de arte abstratas. Nas peças de parede, a superfície da pintura se transforma numa topografia estalactítica feita de silicone esculpido emergente da renda, enquanto em outra obra, a tinta a óleo invade a moldura evocando moluscos brancos presos às pedras da praia. Desalinho é um espaço de volumes monocromáticos e linhas que entoam uma melodia suave de ressonâncias únicas, como numa composição de Cage. Uma flora e fauna brancas suspensas na luz úmida dos trópicos.
© Gabriela Salgado
Curadora e escritora Independente
Londres, 2011