e fiquei de pé sobre a areia | 04. 06. 14 > 05. 07. 14

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e fiquei de pé sobre a areia | 04. 06. 14 > 05. 07. 14

A Mercedes Viegas Arte Contemporânea inaugura, no próximo dia 04 de Junho a exposição E fiquei de pé sobre a areia, de Regina de Paula. As obras da mostra tiveram origem em Jerusalém, onde a densidade histórica da cidade marcou a poética da artista, que há mais de uma década é elaborada a partir de sua vivência em determinados lugares ­ especialmente em Copacabana, bairro onde vive.  Para  Regina  a areia,  matéria  recorrente  em  sua  obra,  é mais  do  que  um  elemento  da paisagem  praiana: é o tempo, a decomposição  das rochas que se transformam  em grãos. Foi justamente  a paisagem  arenosa  que  atraiu  a artista  a Israel, território que é palco de eventos significativos de nossa história e que, para nós no ocidente, marca as origens do cristianismo.

 A partir dos registros feitos no deserto de Negev, e das reverberações  de sua viagem, Regina apropriou­se da Bíblia para realizar trabalhos que resultam em uma reflexão poética acerca de sua carga  simbólica.  Considerando  a Bíblia  tanto  uma  narrativa  histórica  quanto  ficcional, a artista elaborou especialmente para a exposição uma performance para fotografia em uma praia carioca. Nesse  trabalho,  uma  Bíblia  tem  seu  centro  recortado  em  forma  de quadrado,  como um cubo negativo, preenchido  com areia de praia. Uma jovem artista, Anais, verte a areia e depois leva a bíblia para o mar. A imagem, no cristianismo, opera tanto enquanto local de fé como existe para produzir ficções, como afirma a teórica francesa Marie­José Mondzain.

 Um conjunto de cinco bíblias integra a exposição, cada uma com uma intervenção diferente. Entre elas  a  utilizada  na  performance  e outra  em  espanhol,  com  um  templo  de  areia  inspirado  na arquitetura pré­colombiana, em alusão à catequese na América do Sul. O conjunto da obra revela um olhar reflexivo e subjetivo sobre a história e as narrativas produzidas pela cultura.

 A referência à catequese reaparece em duas imagens dispostas verticalmente, tocando na temática da  visão  “civilizatória”  do  homem  branco  sobre  os  índios.  Outros  dois  grandes  conjuntos  de imagens fotográficas apresentam as bíblias no processo de intervenção.

 Finalmente, um vídeo, com um único plano, praticamente um still, intitulado Bandeiras, realizado nas ruinas arqueológicas de Avdat, trazendo à tona o passado arqueológico e sua realidade presente.

 As fotografias da exposição foram realizadas com a colaboração de Wilton Montenegro.

E fiquei de pé sobre a areia

                                                                   " A arte não reproduz o visível, mas torna visível"

                                                                              Paul Klee, in Confissão Criadora, 1920

                                                                                                Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho

 

" Não vou em busca do espaço. Trabalho o espaço que vivencio. É o espaço que me acha".

Com esse testemunho a artista plástica Regina de Paula narra sua poética a partir do relato de sua viagem a Jerusalém em janeiro de 2013. Sua imersão na cidade histórica e religiosa, a experiência no caminhar, na observação do deserto e dos monumentos, a sensação do vento, o silêncio do horizonte árido, foram singelamente captados a partir do vídeo Bandeiras, realizado próximo às ruínas arqueológicas de Advat, cidade habitada até o século VII, onde a única presença humana só pode ser identificada no som do tremular contínuo das bandeiras de Israel e da UNESCO.

 

Foi nesse ambiente, aparentemente distante, que Regina introduz  a Bíblia aos demais elementos  recorrentes e explorados em seus trabalhos anteriores, como em Cubo Paisagem em Nudez e Território de 2009, nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage.  As areias e a água do mar da praia de Copacabana, local onde habita, a presença dos cubos e castelos de areia,  a relação com o espaço urbano. A essa temática vivenciada, a artista sobrepõe sua preocupação com o transitório, o tempo, o efêmero, o devir. Não é somente a água do mar que invade  a areia, destruindo cubos perfeitos ou castelos idílicos, mas é também o vento que corrói e desfigura a construção arqueológica, cubos de pedra que retornam à matéria original.

 

A Bíblia não surge aqui como um elemento dissociado desse inventário de sensações. Ela não tem um caráter puramente  místico, mas sim conectado a mudanças que se processam  entorno de nós, hoje, a todo momento, sem perder sua dimensão histórica. São também elementos que nos fazem refletir sobre como ela se transforma de símbolo religioso,  evangelizador, em matéria civilizatória, redutora e até opressora.

 

Em seu primeiro conjunto de fotografias da exposição, todas realizadas em parceria com Wilton Montengro, Regina “escava”  bíblias, recortando o centro, construindo cubos virtuais, ou cubos negativos, como denomina. Nesse exercício, por trás dos versículos recortados e interrompidos, surge a paisagem, a visão do mar da Galiléia, desertos e montanhas de pedras.

 

Regina ainda  intervém sobre as bíblias,  onde após manipulá-las,   acrescenta seus elementos recorrentes. Se na primeira ela mantém o espaço vazio, como se a paisagem estivesse lá para ser desvendada, na segunda ela preenche o cubo  com a areia de Copacabana, numa alusão a tudo que pode ser recoberto pelo tempo e transformado. Nas outras duas intervenções a artista explora um novo referencial, introduzindo uma dimensão político histórica em seu trabalho, transfigurando o mesmo objeto.

 

Ao realizar a imersão de uma das bíblias no mar de Copacabana, em uma performance para fotografia com a jovem artista Anais, Regina resgata a imagem do batismo. Trabalha novamente com a ideia de transformação, como rito,  ou de uma remissão de pecados (Marcos 1: 4-5). O banho na Bíblia, que se mistura  a areia da praia, a mesma presente na paisagem do deserto,   lava não só as páginas , mas os excessos da civilização. Levanta a possibilidade da regeneração  ou de uma nova salvação. Água de Copacabana,  água do Jordão.

 

Regina então opera um jogo de imagens e símbolos onde,  desse batismo do objeto,  verte água sobre índios Bororós , registrados em fotografia  de 1894 de José Severino Soares. É a purificação do espectador, daquele que se evangeliza e aceita algo talvez superior, ordenador. Mas é  também uma ordem dividida,  resultado de uma sociedade partida, como ilustra a bíblia lacerada ao lado da imagem:

 

" E vos tomarei dentre os gentios, e vos congregarei de todas as terras, e vos trarei para vossa terra.

Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados, de todas as vossas imundícies e de todos os vossos ídolos vos purificarei.

E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo, e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne."

(Ezequiel 35:24-27)

 

Da mesma forma,  em outra bíblia, a pirâmide (ou templo?) semi enterrada num dos cubos escavados reforça a deglutição de uma cultura pela outra, um senso de domínio e conquista, não pela força, mas pela palavra.

 

O deserto em que Regina pisou, e "ficou de pé",  não estava tão longe daqui, como ela mesmo se refere, e foi de lá que ela confirmou e reinseriu suas temáticas nessa exposição.

Seu processo de investigação e sua busca lembra muito o que o artista e professor Klee, escreveu em 1924, por ocasião de sua vernissage em Weimar:

 

"Muitas vezes imagino uma obra muito vasta, que englobe todos os domínios: o elementar, o concreto, o conteúdo e a forma. Isto certamente não passará de um sonho.....Nada deverá precipitar-se. É preciso que a obra cresça, se desenvolva e quando estiver concluída tanto melhor. Devemos continuar a procurar.(...)"

 

 Sim, Regina não se cansa, ela continua a escavar.

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