pantera serpente e outros amuletos | 28.03.18 - 28.04.18
Intitulada Pantera Serpente e outros amuletos, Camile realiza sua primeira exposição individual. O título acrescenta um sentido enigmático ao trabalho, pois amuletos costumam ser peças de esfera íntima, que guardamos e confiamos por nossa conta e risco. De certa forma nos cabe buscar entender e formular internamente um sentido para o que vemos, de maneira similar ao modo como atribuímos significado a um objeto tornando-o um amuleto.
Camile de fato não é o tipo artista cheia de intenções previamente construídas, portanto é necessário olhar e entender o que ela busca comunicar na construção de linguagem que ela organiza dentro da tela, ou seja, como ela associa os elementos de sua gramática, não pré-condicionada ao discurso, mas ainda assim urgindo por nos dizer algo. Este último aspecto me interessa de um modo geral ao olhar para arte, a capacidade que uma coisa feita tem de nos dizer algo e nos tocar de fato.
Na introdução de seu livro de ensaios, How To See, David Salle ressalva que ao olhar um trabalho devemos buscar de fato entender o que aquilo nos leva a pensar e sentir, e não o que supostamente deveríamos pensar baseados em algum discurso externo ao trabalho, em última instância, sermos mais honestos conosco. Como ele mesmo diz, às vezes o texto na parede nos fala sobre as mil estratégias do artista e você se encontra pensando em outra coisa qualquer, talvez até onde fique a cafeteria. Ele busca uma leitura mais ensaística, sendo um artista e não um crítico ou historiador, e é nesse caminho que busco olhar para o trabalho de Camile, uma artista que está iniciando sua trajetória.
Me lembro quando em uma das primeiras visitas que fiz ao atelier-casa de Camile, sem saber muito bem o que me esperava, uma pequena pintura pendurada na parede de fato me capturou, essa pintura se chama Colibri Astral, de 2017, e nela está escrito ARISE DEAD BIRD. Acho que ao falar deste trabalho, e como o senti neste primeiro encontro, consigo expressar o que sinto em relação ao seu trabalho de um modo geral.
Uma coisa escrita costuma exercer muita força sobre nosso pensamento, o verbo costuma ser dominante, ARISE DEAD BIRD é uma frase carregada de poesia: me remete à fala de uma criança, que clama por alegria, por ação, por um lindo vôo – ignorando a morte que existe neste mundo, a tristeza - a criança naquela pulsão de vida com a qual somos natos. O que acontece é que apesar da força desta frase, não foi ela que me chamou a atenção, e sim a própria pintura enquanto objeto. A própria pintura carrega em si uma pulsão de vida, celebrativa, urgente, viçosa. Porém o seu aspecto infantil nos leva a uma espécie de nostalgia, uma tristezinha guardada, que não nos deixa enganar; o mundo é duro, é luta, se a criança não sabe disso ainda, nós sabemos, Camile sabe. Com suas cores extravagantes, sua tinta massuda assentada de maneira sensual, uma mancha se encaixando na outra, bem pertinho numa espécie de carência umas das outras, dividindo o mesmo espaço de forma amorosa, esta pintura tem simultaneamente um caráter combativo, porque os trabalhos de Camile parecem ser feitos com certa pressa, com certa urgência e ansiedade. A alegria e o amor como urgência nos fazem lembrar dos seus antônimos, afinal porque alegria e amor são importantes e urgentes?
O trabalho de Camile é um agregado de significados, as frases muitas vezes têm direções próprias, às vezes não lembramos o que lemos, elas não estão lá para totalizar ou resumir, mas para agregar, às vezes elas nem estão. Junto vemos manchas abstratas, gordas ou magras, junto de figuras, que muitas vezes parecem brinquedos, doces, artigos de sex shop, coisas de plástico. Trata-se de uma pintura meio gulosa, que parece dizer: pode vir que você também cabe nesse retângulo-maravilha.
Eu pensei que queria levar aquela pintura pra casa, como um objeto de sedução meio imediata. Mas o trabalho não se reduz a este traço, um segundo depois ela te recoloca no mundo real, como uma droga de efeito rápido, e nessa ambiguidade eu acho que mora o verdadeiro valor do trabalho.
Definitivamente ali não é um lugar de descanso, tudo flutua e você tem que olhar de novo para que não te escapem coisas, não se trata de uma pintura contemplativa, ainda que carregada de afeto. Por trás de uma aparente festa que se consome rapidamente, de certa euforia de cores e “coisas”, por trás dessa sensualidade melequenta de tinta, me parece haver uma necessidade ansiosa de dar conta deste mundo – missão impossível, talvez patética, talvez heróica, talvez palhaça, que é ao mesmo tempo engraçada e profunda. ARISE DEAD BIRD.
Ana Prata
exposição: 28/03/2018 a 28/04/2018