Omar Salomão | Gisele Camargo - 06 | 10 | 11 > 31 | 10 | 11
OMAR SALOMÃO
Um olhar envergado ou o que eu vejo é um outro
Como quem distraidamente tropeça em astros, Omar Salomão encontra suas imagens, seus objetos, suas palavras. Em meio a uma aventura cotidiana se lança e extrai desses objetos um olhar transgressor, ressignificando-os na imersão de seu campo poético; campo esse que se configura no perpétuo encontro com o “novo”: olhar novamente o já olhado, transversalizar, cruzar novamente por ele sendo outro. Sua câmera perambula, deambula no extremo do objeto retratado. Ao modo de Bateau Ivre rimbaudiano, inventa seu trajeto e nos faz experimentá-lo com ávido interesse e questionamento: o que eu realmente vejo? De onde estou olhando o que vejo? Como ver isso que vejo?
No entanto, outro elemento é fundamental em meio a sua concepção: a palavra. É na palavra e através dela que vela revelando as nuvens como parte das turbulências de seu olhar. É a palavra o elemento libertador do olhar, cruzando o exercício imagético dos seus objects trouvés. Omar liberta no encontro a palavra do seu sentido livro e a imagem fotográfica da sua imobilidade, atravessando-os como um navegante ébrio singrando mares conhecidos, desconhecendo-os, inventando mapas aéreos de afirmação de outros novamente novos, confirmando a potência de um olhar travesso de um jovem libertador de conceitos e mundos. É a força de um trabalho de arte que ama a experiência e experiência o amor no interior de um processo de criação cotidiano e corajoso. Um olhar para se envergar. Um olhar envergado.
Ericson Pires
Poeta, performer e curador.
GISELE CAMARGO
Metrópole
As imagens construídas por Gisele Camargo suscitam uma dúvida sobre aquilo que está diante de nós. E não estou argumentando apenas sobre a sua pintura mas sobre o espaço como um todo. Não sabemos se trata de um espaço imaginário ou construído a partir de um dado real. Se apostarmos nessa última possibilidade, torna-se curioso o fato de como a artista transforma esses frames de paisagens desimportantes, pelo fato de serem da ordem do cotidiano, em um mundo estranho, suavemente melancólico e bruto. Uma construção de mundo que se torna visível através de uma economia de gestos e em uma alternância entre poucas cores (preto, branco e as nuances do cinza), com exceção do momento em que uma tonalidade distinta dessa paleta se confunde entre a paisagem e aumenta esse grau de mistério. O verde, elemento supostamente estranho àquela paisagem, transmite uma ideia de aparição da natureza (ele é inspirador para que percebamos uma mata – e essa sensação se dá exclusivamente pelo contraste entre o preto e o verde - ou uma depressão que desemboca em uma espécie de lago) apesar de ser uma tonalidade irreal para aquela situação. Como dizia Artaud, não é real, mas terrivelmente verdadeiro.[i]
Sua obra quer dar margem ao devaneio e, portanto, visibilidade a um mundo caótico que é organizado pela falta, pelo corte, pela fratura. Nunca temos a percepção de um todo, mas de uma perspectiva oblíqua. Adoto esse termo pelo fato da artista nos oferecer uma metrópole recortada, que nunca se deixa ver por completa. A perspectiva poucas vezes é frontal, nos dando a sensação de uma paisagem fugidia. E ainda, pelo fato de sua pintura incorporar estrategicamente o espaço da galeria, a fratura (dessa perspectiva) reaparece, agora criando um diálogo com a arquitetura em que está instalada.
O seu compartilhamento sobre uma ideia de mundo nos revela uma paisagem sinistra, e que não possui exatamente um posicionamento claro sobre lugar e tempo. Existem frações de torres e céus, signos que nos lembram uma cidade, mas essa imagem é logo deslocada para um território inóspito e ausente de figuras humanas. O que sobressai é uma sensação de melancolia diante de uma paisagem desértica e da promessa de um “acontecimento” que nunca se concretiza. Em uma de suas telas, diante de uma ampla nulidade, assistimos ao céu sendo deslocado do seu lugar natural e comprimido em um território que ambiguamente continua a oferecer o que ele sempre foi: vastidão. Paira sobre esse conjunto de obras a metáfora de um nevoeiro, ou aquilo que dificulta a compreensão, ou ainda a imagem que necessita de seguidas visitas para ter as suas veladuras decifradas. Essa fabricação de lugares é advinda do ambiente taciturno de suas paisagens.
Há um duplo movimento ocorrendo na exposição. Em paralelo à discussão da imagem pictórica, Camargo constrói uma pintura instalativa. As falhas (ou divisões) em suas pinturas são correspondidas pelo espaço da galeria. São continuidades interrompidas. Contudo, é uma paisagem apresentada por meio de módulos. A sua obra nos oferece a possibilidade de vislumbrarmos diferentes ordens e sequências, como um Cortázar (de “O jogo da amarelinha”) pictórico. O nosso olhar se perde nessa quase obsessão de compor uma integralidade por meio dos intervalos oferecidos por sua pintura. A construção desse espaço por meio de interrupções ou “colagens” de fragmentos de paisagens - que em si é a própria pintura - transmite à obra de Camargo um senso de investigação e notabilidade não apenas sobre o lugar da pintura na contemporaneidade, mas como ela alcança e se comporta no mundo.
Felipe Scovino
Outubro de 2011
[i] ARTAUD apud Paulo Sergio Duarte. In: DUARTE, Luisa (org). A trilha da trama e outros textos sobre arte. Rio de Janeiro: Funarte, 2004, p. 44.