Camile Sproesser | gente é macaco de onça > 11.07.22 - 09.08.2022
Camile Sproesser | Gente é macaco de onça
11 de julho > 9 de agosto de 2022 .
Gente é macaco de onça - diz o falante yawalapiti, como conta o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A onça olha pro homem e vê um macaco. O macaco olha pro homem e vê uma onça. Comer o homem é tornar-se onça. Um homem deveria comer outro homem? pergunta Hans Staden a Cunhambebe. E este responde, com uma perna humana na boca. Jauára ichê. Sou uma onça. É gostoso. Assim como a personitude é uma capacidade das onças, também a oncidade é uma potencialidade das gentes.
Camile, como Rosa - e usando tão bem o rosa - pinta o homem em seu devir-animal. Vemos o mundo em toda a sua jaguaridade. Naquilo que Viveiros de Castro chama de diferonça. Derrida fala em differance, a diferença diferente - a palavra soa igual, mas a grafia errada empurra pra novo sentido. Imagine uma diferensa. É diferente. Daí Viveiros fala em diferonça. Onde termina a fera e começa o fora? Pergunta. Impossível dizer. No conto meu tio iauaretê Guimarães Rosa se transmuta em onça, e transfigura sua linguagem em jaguanhenhem - língua de onça. "Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu – Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!... Hé... Aar-rrâ... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã...Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê..."
Pirei com a Camile numa edição de Macunaíma da editora Antofágica. Encontrei tudo o que não se espera da ilustração de uma obra canônica, não encontrei reverência, deferência, referência. Encontrei um rosa-choque herético, laranja-conlurb, azul-caneta, violeta-parra. A coragem de engolir essa onça que é o cânone, e de transformá-la em macaco da gente.
Quando me deparei com a obra da Camile encontrei aquilo que busco numa experiência lisérgica. Não o delírio mas o contrário disso: a lucidez através do restarte das premissas estéticas, ideológicas, morais. O LSD e alguns cogumelos desligam e ligam de novo nosso processador. Nada mais gostoso que voltar à estaca zero, e ver o mundo pela primeira vez, com o espanto dos bebês. Imagina a experiência lisérgica do parto - e a primeira vez que vemos um cachorro, um peixe, um pássaro. Minha filha está na fase de categorizar animais. "Pai, dinossauro era uma forma de dragão?" Sim!
Michael Pollan descreve a mente como uma montanha nevada onde a circulação de pessoas formou sulcos pelas quais é mais fácil descer. O cérebro, com a idade, passa a fazer só os caminhos que já conhece. O LSD enche a montanha de neve nova, e de repente já não há mais trilhas habituais. Você pode escolher qualquer caminho. Sinaptogênese, chamam, quando o cérebro constrói novas estradas, pontes, trilhas. Acontece cada vez menos, na vida. Às vezes acontece com um quadro. Gosto de ver os quadros da Camile como sinaptogenéticos.
Eu sou a barata, responde a Clarice Lispector. Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim. Por essas e outros, o próprio Viveiros de Castro é quem diz: Guimarães é fera, mas Clarice é foda.
Todo pintor é um autodidata, Camile me diz. E conta que pintou tudo isso no mato, cercada de cachorros - quem sabe transmutada em devir-cão. Pirou na pandemia, e pintou pra não pirar. E pirou pintando, e pra pirar pintou.
Gosto que seus animais tem algo de mitológicos, e ainda assim tão reais. Lembro da minha filha: dinossauro é uma forma de dragão. As feras estão por toda parte. Mas não se trata de temê-las. Nem domá-las. A dicotomia não se aplica. Basta lembrar que não há fera sem fora. E ainda assim: não há fera nenhuma fora da gente. Camile é fera. Camile é foda.
Gregório Duvivier