luz + | 12.12.2019 - 15.02.2020
Nascido na Itália, vive e trabalha em Paris há 50 anos. Esta foi a primeira exposição no Brasil do escultor de matriz construtiva abstrata que se notabilizou por seu trabalho de luz e sombra, registros da luz solar, presente em diversos espaços públicos na França, Itália e Alemanha. “A exposição traz, sobretudo, esculturas de luz que dialogam com o espaço da galeria, formas geométricas esculpidas pela sombra”, observa a curadora Elisa Byington, que selecionou obras do artista em diferentes técnicas e materiais.
exposição: 13/12/2019 a 15/02/2020
A obra de Adalberto Mecarelli se constrói desde o inicio sobre as questões da visibilidade e a conceituação do não-visível. Ao longo do tempo, adotando meios diferentes e determinados pressupostos teóricos de matriz construtivista, o artista elabora instrumentos conceituais e práticos com os quais explora com coerência as relações entre luz/sombra, vazio/cheio, dentro/fora, a complementariedade entre visível e invisível, recolocando-os como partes de um todo no espaço.
A formação em fundição na Escola de Belas Artes, aos 19 anos, onde aprende a antiga técnica da “cera perdida”, o aproxima do núcleo primordial da escultura, dos elementos primitivos da arte que usa o fogo, a energia, o vazio, um “vazio perfeito”, espaço oculto ao artesão, onde se consolidará o bronze que cobre o molde em terracota.
A experiência impregna a imaginação do jovem artista e marca sua poética até hoje, apresentando-se de maneiras diferentes ao longo de sua trajetória. As reflexões sobre as qualidades do vazio, sobre a estrutura deste espaço oculto e as propriedades físicas do intervalo existente entre as partes, a interação entre elas, o ocupam intensamente e trazem questões que o distanciam muito cedo da arte figurativa e da ideia de representação, colocando, no centro dos seus interesses, a materialidade dos objetos e suas regras de construção.
Mecarelli realiza obras em ferro e aço, madeira e cera, gesso e cera, volumes que encerram outros e que, ao serem seccionados aleatoriamente, mostram outras possibilidades da forma, enquanto prossegue sua formação em Roma, no curso de Pintura da Escola de Belas Artes. São anos em que Jannis Kounellis, Pino Pascali e Eliseo Mattiacci, ligados às dinâmicas processuais da Arte Povera, no ambiente da vanguarda romana, convivem com os artistas que aderiam às linguagens pop como Michelangelo Pistoletto e Mario Schifano, além doa minimalistas como Maurizio Mochetti e outros que lançavam intervenções de provocação extrema. Um momento efervescente que vê, entre eventos e performances, Richard Serra, ainda distante das celebres esculturas, expor um porco vivo entre animais empalhados (1966), e Kounellis apresentar “margaridas” de chama oxídrica na exposição “Fuoco, Immagine, Acqua Terra” que antecedia de pouco a apresentação 12 cavalos na galeria Attico (1969), um marco critico para o que viria depois.
Nesse período, entre os primeiros trabalhos de Mecarelli, o registro linear do percurso cotidiano de um não-vidente e a exposição Spaziometrie aperte (espaçometrias abertas, 1967) na qual um elástico de dimensão variável, preso na parede por um anel de metal, propunha, a quem se dispusesse, desenhar no espaço o limite de seus movimentos, consentidos pela tensão do elástico. No jogo fugidio, as figuras projetadas pelos participantes em suas evoluções espaciais - na experiência de tensão e extensão do elástico - surgiam e desapareciam nas paredes vazias.
Em 1968, muda-se para Paris e o ambiente é outro. Inicialmente, ele se aproxima do grupo da arte cinética na galeria Denise René e dos artistas em torno de Michel Seuphor, pintor e critico que havia sido muito ligado a Mondrian, e, que, com Torres-Garcia, no final dos anos ’20, em Paris, havia fundado o Cercle et Carré. Não obstante a proximidade com o grupo latino-americano, Mecarelli experimenta sensível distancia daquelas preocupações estéticas. Entre França e Itália, expõe, na Galeria Christian Stein, em Turim, um trabalho cujo movimento deveria ser o mais possível imperceptível. Seus interesses tem pouco a ver com os cinéticos e mais com os minimalistas-construtivistas, tanto na ideologia quanto no modo de pensar o trabalho. Realiza os vide-noir (vazio-negro, 1969), caixa-brancas, negras na parte interna que se tornava visível através do recorte geométrico feito na superfície branca, como se esta tivesse sido escavada na espessura do volume.
Curioso indagar o caminho traçado pelo artista que, em um processo aparentemente contraditório, partindo de uma formação essencialmente ligada à matéria pesada, escolhe a luz, imaterial por excelência, como instrumento para a realização do seu trabalho. Segundo depoimento do artista a experiência da fundição instaura nele uma espécie de obsessão em relação ao vazio, ao caos da matéria em transformação e ao que ocorre no espaço oculto ao artesão durante o processo. Reflexões sobre complementariedade entre claridade e escuridão e as ambiguidades da visão, que, decerto, não são imunes a certa inspiração metafisica.
Apesar de flertar com a invisibilidade, a luz, para Mecarelli, é matéria dotada de volume. “Não é diretamente visível mas gera uma presença concreta. Será sempre necessária a fumaça para percebermos sua existência?” – pergunta. De fato, não obstante a leveza e a impalpabilidade da matéria, suas realizações com a luz, desde os primeiros trabalhos em 1973, são essencialmente escultóricas. Com eles, não busca o efeito cenográfico mas “impregnar de vibração nova as superfícies” e construir volumes geométricos. Ainda que a fronteira com a pintura se insinue no trabalho, a relação de complementariedade e interdependência evidenciada, aponta para a concretude da forma no espaço que, afinal, é afirmada por sua sombra.
Nas diferentes escalas e contextos, arquitetônicos e urbanos, nos quais atua - fachadas de monumentos, antigas torres e abadias - suas projeções de volumes geométricos ecoam, comentam, desestabilizam perspectivas, transformam o lugar onde se instalam. No caso das intervenções em museus, a partir de 2004, as projeções atuam criticamente na relação que estabelecem com as obras existentes, sublinham seus eixos compositivos, a tensão dramática, as relações volumétricas internas a uma obra, ou entre elas e seus contexto.
As possibilidades plásticas da luz solar começaram a ser exploradas na mesma década de ’70. Mas se na projeção de sombra e luz há uma dinâmica ativa na “decupagem” da forma, nos trabalhos com a luz natural o artista se põe à disposição do movimento do sol e das estrelas. Pincela com nitrato de prata as formas resultantes de diferentes angulações da luz solar, cuja escolha aleatória é ditada por princípios diferentes a cada serie. São fotografias, no sentido etimológico do termo, memoria da presença luminosa naquele instante, mas, dada a ausência de fixador, o nitrato de prata continua a agir quando exposto à luz, adquirindo varias tonalidades, do marrom ao cinza chumbo, corroendo lentamente aquela marca, onde, em um tempo impreciso, restará o vazio.
Em obras mais recentes, Les demoiselles de Malakoff, aqui expostas pelas primeira vez, o nitrato de prata é utilizado para revelar desdobramentos da imagem de volumes geométricos. Embrulhados aleatoriamente pela tela crua, a superfície pinceladas externamente com nitrato de prata, tem como resultado imagens distintas e surpreendentes de um mesmo cubo ou poliedro, as quais, de modo não proposital, remetem a imagens cubistas-futuristas, suprematistas, presentes na abstração geométrica do começo do século. A geometria escura e nítida que se desenha assim, se acompanha pelo riscado das dobras do linho cru, a parte oculta do tecido que foi exposto à luz. Por caminhos diversos, luz e sombra caminham lado a lado, aqui também.