deixa ventar | 17.09.2019 - 25.10.2019
A Galeria Mercedes Viegas apresenta “Deixa Ventar”, primeira exposição individual da artista Cela Luz. O conjunto de pinturas, que orbitam entre o referencial e o abstrato, explora a textura do óleo numa paleta luminosa. A série “Deixa Ventar” proporciona impressões sinestésicas, nos faz emergir em perspectivas em movimento. A mostra, com curadoria de Pollyana Quintella, reúne 33 obras da artista.
exposição: 17/09/2019 a 25/10/2019
Gerard Richter costuma dizer que falar sobre pintura não é apenas difícil, como talvez até completamente sem sentido. Escrever sobre pintura é antes de tudo reconhecer a impossibilidade de dizê-la, reconhecer que a vocação língua é a sua insuficiência, e talvez por isso a procura por linguagens outras. Entre a palavra e a imagem fica sempre algum resto que não se sabe para onde vai. Fadados a fracassar, escrevemos sobre pintura buscando algum alinhamento com a sua gramática. E não podendo capturá-la, damos voltas ao seu redor, exercitando alguma dança possível.
Nesta individual, Cela Luz apresenta uma série de pinturas que rearranjam fragmentos de paisagem. De pequenos formatos – que reforçam o pictórico como gesto íntimo – a pinturas maiores, somos imersos em perspectivas em movimento, horizontes que escapam como memórias fugidias. Cela opera com capturas temporárias, aparições e lampejos prestes a se reconfigurar, entre o referencial e a abstração. Aqui é tudo figura e já não é, imagens sacodidas pelo vento, chiados. vu-uu-uu! veee! vuum! vvvv!
Trata-se também de uma pintura sinestésica. A paleta luminosa, com a textura impositiva do óleo, por vezes sugere cheiros, sabores, deleites impressos na imagem. Uma boca se enche d’água diante das gordas Jabuticabas, enquanto A Noite na Estrada nos atravessa com um golpe de ar. É qualidade do óleo produzir tangibilidade sobre aquilo que descreve. Embora a pintura produza versões do mundo, ela define o real como aquilo em que se pode por as mãos, oferecendo brilho, solidez. Ver nos ensina também a tocar, possuir. Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis. Talvez a pintura não falsifique a realidade, mas a realidade falsifique a pintura.
E se o gênero da paisagem esteve vinculado ao que há de sublime e monumental, as imagens de Cela vem da memória, reivindicando o horizonte no que há de íntimo, onírico, menor (“menorme”, como quer José Paulo Paes). Embora seja possível vez ou outra reconhecer um jardim ou uma queda d´água, essas composições desafiam nossa familiaridade, já que estão descoladas de qualquer geografia. A praça que serve de referência para uma pintura poderia estar em qualquer lugar do mundo. Curiosamente, são pinturas entre a vocação arquetípica – produzindo um certo senso universal - e o delírio infantil, ávido em brincar com a realidade. O que fazemos diante desses fragmentos é justamente vincular nossos próprios referenciais ou, ao avesso, afrouxar seus significados, suspender a precariedade do real.
“Aprendi a viver em pleno vento”, diz Sophia de Mello Breyner em um de seus poemas. A pintura de Cela Luz caminha com essa lição: chacoalha horizontes, deixa ventar.
Pollyana Quintella