"labirinto" + "medida fiel" | 31.10.2018 - 07.12.2018
A Galeria Mercedes Viegas apresenta Medida Fiel, primeira exposição fotográfica da artista visual carioca Cristina Lapo, e Labirinto, uma seleção de oito pinturas da artista também carioca Goia Mujalli.
exposição: 31/10/2018 a 07/12/2018
Cristina Lapo, Medida Fiel
As linhas – físicas, desenhadas ou riscadas – organizadas em geometrias espaciais são presença constante na produção de Cristina Lapo. Se em suas obras anteriores ela as organizava como formas geométricas que conformavam sutis arquiteturas de cantos virtuais materializados espacialmente, na série Medida Fiel, que agora nos apresenta, a espacialidade perdeu destaque em favor de construções bidimensionais legatárias de dois dos principais movimentos da abstração geométrica – o construtivismo e o minimalismo. Se o primeiro formava parte de uma visão mais ampla de uma sociedade revolucionária e em favor da racionalização da produção e da organização social de modo geral, o segundo já extrai da indústria do pós-guerra seu material artístico, cuja serialidade impõe tal rigor geométrico. As distâncias e proximidades entre os dois movimentos é algo que nos chama atenção à primeira vista na geometria suis generis de Cristina.
No entanto, quando nos aproximamos da imagem, vemos que aquilo que nos parecia ser a Cruz Negra de Malévitch, na verdade está conformada por fios de cabelo coletados pela artista. Assim, Lapo carrega o rigor geométrico das vanguardas construtivas ou concretistas com uma ironia corporal e pop que nos traz de volta a nossos próprios corpos contingentes em sua organicidade. Se na abstração geométrica a expressão do artista está alijada, Lapo a traz de volta por meio dos fios que se emaranham nas geometrias orgânicas que produz com os fios de cabelo. Essa geometria suis generis e contemporânea por excelência muito distante da malevitchiana ou da de Carl Andre, por exemplo. No vídeo que Cristina realizou junto à série fotográfica, ela também nos dá a ver tanto o processo de arranjo dessas geometrias, quanto apresenta esse processo enquanto obra, reforçando a presença e expressão da artista enquanto produtora daqueles arranjos que no fim das contas são efêmeros, apesar de eternizados no clique da máquina fotográfica.
Se o Neoconcretismo brasileiro já havia introduzido o corpo na racionalidade da arte construtiva, ele o fez por meio da abertura da experiência artística. Em Lapo, continuamos passivos enquanto sujeitos diante da obra, mas a experimentamos no mesmo plano que nossas contingências corporais. A ironia pop que aparece aqui também nos remete imediatamente às Construções Rurais de Nelson Leirner, que une o kitsch popular ao rigor construtivo brasileiro em pleno descrédito de fins dos anos de 1990. Lapo assim, nos dá a ver tanto outras formas de arranjos espaciais geométricos quanto traz para o campo da arte resquícios de nosso cotidiano corporal que de outro modo seriam descartados.
André Leal – crítico e curador br>
Goia Mujalli, Labirinto
Devo reconhecer este sentimento?
“Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência de “tudo é um”. Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa verdade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mas a raiz, prendendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, imponderável, impalpável.”
Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem
Devo reconhecer este sentimento e entender por que é tão difícil contê-lo? Esta é a primeira pergunta que tenho diante do meu encontro com as pinturas de Goia Mujalli. Elas não existem em um estado contido, mas explicitam uma fluidez de movimento que é, ao mesmo tempo, reveladora e excitante. No entanto, é crucial esclarecer que minha experiência é aquela de um estrangeiro. Eu não sou brasileiro. Mas sei que essas pinturas exalam uma vibração que não experimento na Europa a não ser através de representações na literatura, ou de minhas conversas com brasileiros que moram por aqui.
Os títulos de Mujalli sugerem objetos relacionados a realidade. De fato, a codificação de sua obra se desenvolve a partir de uma séria contemplação sobre o processo da pintura. No entanto, sinto-me exposto à sua energia — ela está incorporada no trabalho. O corpo se movendo de tal maneira que o trabalho o segue. Utilizando uma lucidez de pinceladas que se constroem em sequências de implosões, criando aquilo que experienciamos como eventos individuais. Cada pintura tem seu próprio peso, seu próprio passado, seu próprio momento. Isso não quer dizer que se trata de uma artista em confronto com a tela em branco. Longe disso. Há ocasiões onde me vejo convencido de que o trabalho não foi feito, mas sim revelado. Digo isso apenas porque há revelações minuciosas acontecendo em cada pintura, uma série de apagamentos intricados que descascam a pele da tinta para mostrar novas profundidades e movimentos. Tudo isso está ligado a uma espécie de ritmo infinito, um ritmo de constante questionamento sobre e sob o movimento da pintura. Obras como Cosmicomics me parecem radiantes e frágeis, como se me forçassem a considerar, simultaneamente, a dúvida e a confiança. Os trabalhos possuem uma vitalidade que, para mim, exigem intimidade. Essa intimidade, então, me chama a ter coragem. Quando encontro uma pintura de Mujalli, levo todo o meu coração comigo, sou puxado para fora de mim, para um mundo de infinitas intensidades.
O trabalho não vem da minha língua e, como tal, exige muito de mim. Preciso escutar seu som, seu lirismo, suas paixões, suas visões, para entendê-lo. No entanto, ao fazê-lo, consigo identificar certas características da cultura que o permeia. Eu vejo a vibração na escolha das cores, nos ritmos, em uma filosofia subjacente que é enérgica e vital. Enquanto ouço e leio sua linguagem, percebo claras intenções por trás do que está acontecendo. Eu posso sentir que o trabalho fala por sua terra e de sua terra. Sinto-a ressoando com um coração profundo que quer falar. Mujalli usa os símbolos da própria cultura de maneira expandida, trazendo suas frutas, suas águas e paisagens — suas particularidades físicas — para a tela. Essas pinturas lutam para existir. Elas dançam. Elas se movem. Elas amam. Não há dúvida de que são pinturas feitas por alguém que vive com intuição e coragem, mas também de alguém que vive longe de casa buscando formas de habitar sua essência. Mujalli procura usar a pintura para entender o imponderável, o impalpável, vislumbrando tudo sem extrair nada. Vejo que não se trata aqui de um sentimento que conheço. Talvez mais precisamente: a experiência diante de suas pinturas não me oferece um sentimento que posso definir.
Joshua Leon br>