a transbordar | Marcia Thompson - 03 | 02 | 22 > 10 | 03 | 22
marcia thompson | a transbordar
3 de fevereiro > 10 de março de 2022
There is no such thing as pessimistic art - Art affirms.
- Nietzsche (The Will to Power)
Os recentes trabalhos que Marcia Thompson expõe na Galeria Mercedes Viegas, ainda que realizados em uma situação de clausura na sua casa em Londres durante a pandemia, nos trazem um alento, uma alegria. Há um surplus de vida nas cores fortes e elementares que se materializam e transbordam pelas frestas, pelas fendas, pelas tramas, pelos dedos, pelo corpo e no mundo. Insistem em nos levar ao encontro de Eros e não de Tanátos.
A arte afirma-se através da obra como uma necessidade vital, como potência transformadora e transbordante de possibilidades.
Não poderia deixar de pensar estes trabalhos em sua relação com o pensamento de Hélio Oiticica, que promoveu a idéia de 'dar corpo à cor' e que sob inspiração da filosofia de Nietzsche (Amor Fati e Eterno Retorno) ajuíza com genialidade na sua famosa bandeira o que é a essência desta filosofia da vida — 'Da adversidade vivemos'.
Percebo que o processo que vimos se desenvolver na obra de Thompson, tenha uma ressonância com a de Hélio, tanto do ponto de vista estético quanto ético. Conheço bem a obra de ambos e não falo por modismo. Principalmente na trajetória teórica daquele artista que surgiu com os ‘Bólides’, a parte que trata da expansão da cor no espaço e no seu conceito de 'Transobjetos'. Em ambos, a desconstrução dos elementos pictóricos e tradicionalmente artísticos, incluindo a tela, a moldura, o uso da monocromia, as cores quentes, a pintura transbordante no espaço em si. Neles, o processo experimental torna-se parte da gênese da obra, empreendendo uma submissão do conceitual ao fenômeno vivo, no desvendar da ontologia do gesto criador.
Tendo iniciado seus estudos em artes na Escola de Artes Visuais do Parque Lage Rio de Janeiro EAV no final dos anos oitenta, Marcia integra o grupo de artistas que desponta nos anos noventa, e que segue a investigar os princípios e predicados da arte por seus próprios meios, métodos e proposições, como que partindo do grau zero.[1] Ao assumir esse caminho da pesquisa e experimentação, a escolha da artista recai sobre dois eixos teóricos que norteiam seu trabalho. Um que investiga o conceito da pintura, aspecto explorado em sua prática até os limites. O outro que enfoca os aspectos existenciais, auto-biográficos, sociais, feministas, que em sua última instância, são políticos. Os aspectos politicos se evidenciam mais claramente em seus vídeos, desenhos e textos.[1]
Foram seus professores, entre outros, Daniel Senise, Bia Milhazes e Luiz Pizarro, expoentes da pintura. E os que acredito contribuíram de outra forma, também para sua formação teórica, Milton Machado, Marcio Doctors e Charles Watson. Havia um rico convívio social e artístico na EAV que facilitava as trocas intelectuais. Não menos importantes foram seus colegas e parceiros. Marcia cita por exemplo Adriano Pedrosa e Courtney Smith:
Eram desse grupo e me mostraram muitos livros sobre arte conceitual e política. Aprendi a fazer minha própria tinta a óleo com Paulo Pigmento. Acho que absorvi o Neoconcretismo e o Minimalismo de uma forma quase inconsciente. Então eu fui para Nova York e vi muitos Cy Twomblys e fui para Yale ver Eva Hesse. Acho que Manzoni e Mondrian também são importantes. Eu me diverti muito com Tunga antes de me mudar para Londres. (Entrevista a mim, 2017)
O que de fato é relevante é como se dá o agenciamento dessas confluências na singularidade da obra, a forma desafiadora com que se aproxima de seus objetos e de como funde elementos díspares numa linguagem que lhe é própria. Enquanto sustenta um aguçado senso crítico em relação ao sistema de arte e à normatividade do métier, Marcia se empenha com determinação em dominar os elementos formais e históricos da arte mas para questioná-los e ultrapassá-los, e não sem uma pitada desse humor insubordinado Tunguiano.
Note-se que a prática do trabalho é atravessada por um permanente estado de invenção e reinvenção, por uma obstinação heróica, uma teimosia, como que se pautando numa lista de tarefas-quase-impossíveis para a realização da obra. Dar corpo à cor, que é um espectro de luz, matéria líquida ou pigmento. Conter a tinta viscosa envelopando-a com superfícies porosas, tecidos perfurados, tramas elásticas e paninhos bordados. Colocar o linho da tela não mais esticado no chassis mas amassado no interior das bolas de tinta. Alterar o estado natural da tinta encáustica com adição de cera até que se torne massa flexível e moldável. Expandir o limite dos campos de linguagem da arte, fazer da pintura escultura e vice-versa. Extrair o conhecimento da vivência do seu próprio trabalho e não no aprendizado das teorias de artes. Romper com as normas e convenções da pintura como atitude existencial.
Atuando num mundo cada vez mais globalizado, capitalizado e injusto, onde muitas vezes a/o artista se defronta com a falta ou precariedade de meios e recursos, Márcia me parece enfrentar essas situações desumanizantes vividas na arte e na vida através de escolhas éticas; assumindo uma proposição libertária na arte. Como me escreveu:
Posso associar meu deslocamento geográfico do Brasil para a Inglaterra com o movimento de minhas obras saltando da parede para o ar para encontrar um outro espaço. A pintura e a escultura migraram para o mundo real, muitas vezes deixando para trás molduras e pedestais. No entanto, elas têm que achar o seu próprio território. Sinto uma vulnerabilidade ao expor as massas de tinta no espaço desconhecido. Pode ser minha própria vulnerabilidade como mulher, mãe, imigrante e artista tentando lutar contra as dificuldades e invisibilidades políticas e sociais. Se sentir desprevenida, desprotegida e em meio à dúvida, já é um bom começo para se começar uma revolução. (Texto da Artista, 24/01/2022)
Não existe uma fuga ou abandono da realidade brutal, mas a afirmação da possibilidade de um enfrentamento heróico das vicissitudes da vida através da arte, que se refletem nestas obras. Há nelas uma pujança, um transbordamento da arte, uma pulsão erótica, um gozo de vida, uma afirmação Nietzscheana.
Paula Terra-Neale
[1] Fiz a curadoria com trabalhos desse grupo de artistas que cursaram a EAV, alguns expoentes deles, Marcia inclusive em 2018, na Villa Aymoré, Cá Entre Nós.
[2] Marcia atua em pelo menos dois grupos interseccionais da arte, o Far Few of Us e o Bora Girls.
Paula Terra-Neale é historiadora da arte e curadora independente (PhD, Essex University). Criou e dirige a plataforma de projetos curatoriais TERRA-ARTE desde 2016. Trabalhou com instituições culturais como o British Council, The National Trust, The Modern Art Oxford, Coleção de Arte Latino Americana da Universidade de Essex e a Casa França-Brasil. Foi professora e pesquisadora nos departamentos de História da Arte da EBA-UFRJ e PUC-Rio.